A
Françoise Le Roux
In Memoriam
Na península do Morraço,
existe um famoso sítio arqueológico de "época galaico-romana" conhecido como
santuário do Facho de Donom. Tem a particularidade de que nele apareceu um
número inusitado de aras votivas –mais
de cem- dedicadas a um deus indígena, não romano e supostamente desconhecido e
único. Nas publicações que circulam sobre o santuário chama-se-lhe deus Berobreo,
nome que atingiu certa popularidade ultimamente.
Com algumas variantes, a
inscrição que aparece nas aras diz: DEO LARI (ou LARO) BEROBREO ARAM POSVI ("pus
uma ara para o deus lar berobreo"). Nas inscrições deste tipo o nome do deus vai
em caso dativo seguido dos seus epítetos, que são adjetivos que explicam a natureza do
deus ou deusa ou alguma das suas características. Até agora interpretou-se
que era um deus tipo lar romano (deus lar,
em nominativo) de nome Berobreo. O que nós pensamos é que
não é um lar senão um deus cujo nome em nominativo celta é Laros e os seus
epítetos são Beros Breos: Deus Laros
Beros Breos, relacionado etimologicamente com l@r- “chaira, planície”, e o seu significado é "deus do
Além".
É característico dos
celtas considerar as chairas, os terreos chãos e largacíos, como lugares sagrados. Dizer “lugar chão” é o mesmo que dizer “lugar consagrado”. Isto é assim porque
para os celtas os deuses são predecessores da humanidade na ocupação do
território. As deusas primordiais segundo relata o Lebor Gabala, fazem chairas e morrem nelas e, a seguir, do seu
corpo nasce um rio. Desta maneira a terra fica consagrada e os homens
já podem dividí-la e ocupá-la. Nestas chairas
é onde depois têm lugar as batalhas e se soterram os mortos, são campos de
batalha e cemitérios, por isso não aparecem sepulturas nos castros. A célebre chã
de Mag Tured, que comemora a batalha do mesmo nome, significa Chaira dos
Esteios ou dos Guerreiros. O vocábulo tured
significa a um tempo “esteio” e “guerreiro”, já que um guerreiro em pé é um
esteio firme e quando morre chanta-se uma pedra sobre ele (é possível que esta
identificação entre a pedra e o morto perdurasse muito tempo: veja-se aqui).
Os corpos e as almas dos
guerreiros mortos não ficam nestas chãs senão que pelo rio nascido da deusa, se
dirigem às Terras da Bem-Aventurança que está além do mar, numas ilhas longe
da vista, onde há uma vida melhor. No entanto, a residência
dos deuses que individualmente se conhece como brog ou brug (albergue), está debaixo da terra. Ao sid dos deuses pode-se aceder entre outros xeitos, por uma mámoa, assimilando, assim, os
cemitérios neolíticos preexistentes, que são rebatizados como chairas: Chão de
Mazós, Chã da Arquinha, Chã da Armada. O grande dólmen de Newgrange, o Brug na Bóinne, é a morada do
Dagda, de Lug e do mesmo Óengus...
Mámoas de Santa Marinha, entre Samos e O Íncio |
Algumas das palavras que
expressam a noção de chão na línguas indoeuropeias são as derivadas do radical proto-indoeuropeu pl@- , do qual deriva o latín planus, (de aqui o galego chão), o grego plato, platea
(de aqui praça), o inglês flat, etc. Neste
último exemplo vemos que nas línguas germânicas o p inicial se converte em f.
Pois bem, nas línguas celtas este p inicial desaparece e a raiz fica em l@-, à
qual se acrescentam diferentes sufixos. Temos assim derivados com t, como o
irlandês lethan ("planície"), com r como leira (compare-se com o inglês floor) e
os topónimos galegos Laro, Laracha e Larouco; com m ou n, como o irlandês lam
("palma da mão"), Lamas, Laneobriga, Lanhobre, Lãs.
O que nos interessa
salientar são as conotações religiosas dos topónimos, uma de cujas
manifestações é a coincidência com o nome de um deus. Assim Letavia é o nome
antigo da Bretanha armoricana e da deusa gala Litavis; Larouco é um nome de um
monte e ao deus Larouco se dedican inscrições aparecidas em Montalegre e Baltar; Mediolanum (Milão), significa “no meio
da chaira” porque é um lugar central, o Centro do Mundo; em Chão de Lamas (Miranda
do Corvo) apareceu um tesouro que contém,
entre outros objetos, duas lúnulas, atributos eminentemente sacerdotais. São
Cibrao de Lãs, antigamente Laneobriga repete-se nos nomes dos deuses Laneana e Lanos, a quem se
dedicam inscrições na Lusitânia.
Tanto o sid dos homens
como o dos deuses se concebem simbolicamente como chãs e até tal ponto se
identifica o mar com uma chã que Mananán Mc Lir, deus do mar, e o seu pai Ler levam no seu
nome esta mesma raiz, que em antigo irlandês chegou a significar o mar mesmo. É possível que nomear o
mar como Chaira ou Grande Chaira seja secundário à Grande Chaira da
terra. Em qualquer caso, uma planície é uma entrada ao além, seja por via
marítima ou subterrânea.
Ara de Donom (fotografia de A.G.Buxán) |
Numa ara de Donom de
feitura bastante indígena, na qual, além de umas lindas casinhas, aparecem as aspas funerárias
de que falaremos em seguintes entregas, o dativo que normalmente aparece como lari aparece aqui como laro e indica um nominativo laros; deo laro significaria "para
o deus Laros" e não "para o deus lar". A interpretação deste deus como lar não
reparou nos seguintes factos:
- Não nos consta que os
celtas tivessem lares. A divindade que recolhe mais de perto o papel dos lares
como deuses das encruzilhadas é Bandua; como condutor de vivos e mortos nón é
triplo, como são os lares.
-Não se tivo em conta a
semelhança com Ler nem que existe uma pequena praia ao pé do monte do Facho
chamada Lira e também não se tiveram em conta
as lendas recolhidas na zona. Dous vizinhos da zona de Nerga, Antonio Taboada
Táboas e seu amigo Raúl (✝) contarom-nos a lenda de que pelas
noites saem barcas de mortos da praia para as ilhas de Ons e quando os
vizinhos escutam de noite barulho na praia sabem que não podem sair. As barcas
leva-as a maré, porque não têm barqueiro nem remador (lembremos-nos das prezes
irlandesas ao bom refluxo, à ressaca do mar, para que nos leve à boa terra).
- As casinhas, portadas
e colunas que se vêem nas aras estão-nos a falar do brog
onde vive Laros, a Chaira, o senhor do Além. Um dos seus epítetos, breos,
aparece alguma vez como BRIAECVS, e é possivelmente a forma celto-galaica de brog .
Ara de Donom (fotografia de A.G.Buxán) |
A primeira parte do epíteto, beros é interpretado por
Carlos Búa como "luz" o qual ficaria bem para um condutor amoroso das
almas. O deus que habita no Facho de Donom seria "o que (dá) a luz (no
caminho) ao Brog, ao Além". Outro dado interessante é que numa ara
apareceu a preze pro salute, e isso não quer dizer que Laros seja
um deus mencinheiro senão que se lhe está a pedir saúde no trânsito ao Além, no senso de salvação dos perigos, de ajuda para chegar indenes. Uma divindade que tira o medo à
morte e acende um facho para iluminar o caminho à sua morada não tem tradução na
rígida religião romana nem na católica, que se nutriu durante muitos anos do
medo à morte. Isto perfila-nos Laros como condutor de almas, como psicopompo.
Ao devolver a Laros o seu nome reivindicamos para os nossos devanceiros uma
relação não medonhenta e até amável com a morte.
Um paralelo deste deus
Laros temo-lo na inscrição de Lero e Lerine, nas ilhas Lerins, enfrente de
Marselha, na Gaula Narbonense. Aparecida num recipiente de marfim e escrita em grego, suspeitamos que está a encobrir Laros e Lera, a sua paredra, já
que os navegantes lhe faziam votos como a Mananán MacLir.
Por último, parece-nos boa ideia recolocar
alguma das aras in situ como vimos na nossa última visita ao Facho. Ainda assim
o estado de abandono é deplorável. Laros não é um deus romano. É uma figura
mitológica celta da qual temos que estar muito fachendosos porque nos fala de
uma relação com a morte absolutamente contemporânea. É a relação serena
com a morte. A igreja católica pôs timidamente a Santo André como padroeiro
da freguesia do Hío sem se atrever sequer a fazer uma interpretatio, não fosse
ser que se perdesse o medo à morte. Os celtas não eram só guerreiros, nen eram
só lavradores. Já César falava do elevado sentido religioso dos druidas.
Como podemos ter no
abandono a uma lección fósil, a algo com que agora lutamos a base de meditação e de Zen?
Ilhas de Ons desde o Facho |