quarta-feira, 29 de novembro de 2017

O direito a ter um nome: Laros, senhor do Além

A Françoise Le Roux
In Memoriam


Na península do Morraço, existe um famoso sítio arqueológico de "época galaico-romana" conhecido como santuário do Facho de Donom. Tem a particularidade de que nele apareceu um número inusitado  de aras votivas –mais de cem- dedicadas a um deus indígena, não romano e supostamente desconhecido e único. Nas publicações que circulam sobre o santuário chama-se-lhe deus Berobreo, nome que atingiu certa popularidade ultimamente.

Com algumas variantes, a inscrição que aparece nas aras diz: DEO LARI (ou LARO) BEROBREO ARAM POSVI ("pus uma ara para o deus lar berobreo"). Nas inscrições deste tipo o nome do deus vai em caso dativo seguido dos seus epítetos,  que são adjetivos que explicam a natureza do deus ou deusa ou alguma das suas características. Até agora interpretou-se que era um deus tipo lar romano (deus lar, em nominativo) de nome Berobreo. O que nós pensamos é que não é um lar senão um deus cujo nome em nominativo celta é Laros e os seus epítetos são Beros Breos: Deus Laros Beros Breos, relacionado etimologicamente com l@r- “chaira, planície”, e o seu significado é "deus do Além".

É característico dos celtas considerar as chairas, os terreos chãos e largacíos,  como lugares sagrados. Dizer  “lugar chão” é o mesmo que  dizer “lugar consagrado”. Isto é assim porque para os celtas os deuses são predecessores da humanidade na ocupação do território. As deusas primordiais segundo relata o Lebor Gabala, fazem chairas e morrem nelas e, a seguir, do seu corpo nasce um rio. Desta maneira a terra fica consagrada e os homens já podem dividí-la e ocupá-la.  Nestas chairas é onde depois têm lugar as batalhas e se soterram os mortos, são campos de batalha e cemitérios, por isso não aparecem sepulturas nos castros. A célebre chã de Mag Tured, que comemora a batalha do mesmo nome,  significa Chaira dos Esteios ou dos Guerreiros. O vocábulo tured significa a um tempo “esteio” e “guerreiro”, já que um guerreiro em pé é um esteio firme e quando morre chanta-se uma pedra sobre ele (é possível que esta identificação entre a pedra e o morto perdurasse muito tempo: veja-se aqui). 


Os corpos e as almas dos guerreiros mortos não ficam nestas chãs senão que pelo rio nascido da deusa, se dirigem às Terras da Bem-Aventurança que está além do mar, numas ilhas longe da vista, onde há uma vida melhor. No entanto, a residência dos deuses que individualmente se conhece como brog  ou brug (albergue), está debaixo da terra. Ao sid dos deuses pode-se aceder entre outros xeitos, por uma mámoa, assimilando, assim, os cemitérios neolíticos preexistentes, que são rebatizados como chairas: Chão de Mazós, Chã da Arquinha, Chã da Armada.  O grande dólmen  de Newgrange, o Brug na Bóinne, é a morada do Dagda, de Lug e do mesmo Óengus...

Mámoas de Santa Marinha, entre Samos e O Íncio

Algumas das palavras que expressam a noção de chão na línguas indoeuropeias são as derivadas do radical proto-indoeuropeu pl@- , do qual deriva o latín planus,  (de aqui o galego chão), o grego plato, platea (de aqui praça), o inglês flat, etc.  Neste último exemplo vemos que nas línguas germânicas o p inicial se converte em f. Pois bem, nas línguas celtas este p inicial desaparece e a raiz fica em l@-, à qual se acrescentam diferentes sufixos. Temos assim derivados com t, como o irlandês lethan ("planície"), com r como leira (compare-se com o inglês floor) e os topónimos galegos Laro, Laracha e Larouco; com m ou n, como o irlandês lam ("palma da mão"), Lamas, Laneobriga, Lanhobre, Lãs.

O que nos interessa salientar são as conotações religiosas dos topónimos, uma de cujas manifestações é a coincidência com o nome de um deus. Assim Letavia é o nome antigo da Bretanha armoricana e da deusa gala Litavis; Larouco é um nome de um monte e ao deus Larouco se dedican inscrições aparecidas em Montalegre e Baltar;  Mediolanum (Milão), significa “no meio da chaira” porque é um lugar central, o Centro do Mundo; em Chão de Lamas (Miranda do Corvo)  apareceu um tesouro que contém, entre outros objetos, duas lúnulas, atributos eminentemente sacerdotais. São Cibrao de Lãs, antigamente Laneobriga repete-se nos nomes dos deuses Laneana e Lanos, a quem se dedicam inscrições na Lusitânia.

Tanto o sid dos homens como o dos deuses se concebem simbolicamente como chãs e até tal ponto se identifica o mar com uma chã que Mananán Mc Lir,  deus do mar, e o seu pai Ler levam no seu nome esta mesma raiz, que em antigo irlandês chegou a significar o mar mesmo. É possível que nomear o mar como Chaira ou Grande Chaira seja secundário à Grande Chaira da terra. Em qualquer caso, uma planície é uma entrada ao além, seja por via marítima ou subterrânea.
Ara de Donom (fotografia de A.G.Buxán)

Numa ara de Donom de feitura bastante indígena, na qual, além de umas lindas casinhas, aparecem as aspas funerárias de que falaremos em seguintes entregas,  o dativo que normalmente aparece como lari aparece aqui como laro e indica um nominativo laros; deo laro significaria "para o deus Laros" e não "para o deus lar". A interpretação deste deus como lar não reparou nos seguintes factos:

- Não nos consta que os celtas tivessem lares. A divindade que recolhe mais de perto o papel dos lares como deuses das encruzilhadas é Bandua; como condutor de vivos e mortos nón é triplo, como são os lares.

-Não se tivo em conta a semelhança com Ler nem que existe uma pequena praia ao pé do monte do Facho chamada Lira e também não se tiveram em conta as lendas recolhidas na zona. Dous vizinhos da zona de Nerga, Antonio Taboada Táboas  e seu amigo Raúl (✝) contarom-nos a lenda de que pelas noites saem barcas de mortos da praia para as ilhas de Ons e quando os vizinhos escutam de noite barulho na praia sabem que não podem sair. As barcas leva-as a maré, porque não têm barqueiro nem remador (lembremos-nos das prezes irlandesas ao bom refluxo, à ressaca do mar, para que nos leve à boa terra).

- As casinhas, portadas e colunas que se vêem nas aras estão-nos  a falar do brog onde vive Laros, a Chaira, o senhor do Além. Um dos seus epítetos, breos, aparece alguma vez como BRIAECVS,  e é possivelmente a forma celto-galaica de brog .
Ara de Donom (fotografia de A.G.Buxán)

A primeira parte do epíteto, beros é interpretado por Carlos Búa como "luz" o qual ficaria bem para um condutor amoroso das almas. O deus que habita no Facho de Donom seria "o que (dá) a luz (no caminho) ao Brog, ao Além". Outro dado interessante é que numa ara apareceu a preze pro salute, e isso não quer dizer que Laros seja um deus mencinheiro senão que se lhe está a pedir saúde no trânsito ao Além, no senso de salvação dos perigos, de ajuda para chegar indenes. Uma divindade que tira o medo à morte e acende um facho para iluminar o caminho à sua morada não tem tradução na rígida religião romana nem na católica, que se nutriu durante muitos anos do medo à morte. Isto perfila-nos Laros como condutor de almas, como psicopompo. Ao devolver a Laros o seu nome reivindicamos para os nossos devanceiros uma relação não medonhenta e até amável com a morte. 


Um paralelo deste deus Laros temo-lo na inscrição de Lero e Lerine, nas ilhas Lerins, enfrente de Marselha, na Gaula Narbonense. Aparecida num recipiente de marfim e escrita em grego, suspeitamos que está a encobrir Laros e Lera, a sua paredra, já que os navegantes lhe faziam votos como a Mananán MacLir.


 Por último, parece-nos boa ideia recolocar alguma das aras in situ como vimos na nossa última visita ao Facho. Ainda assim o estado de abandono é deplorável. Laros não é um deus romano. É uma figura mitológica celta da qual temos que estar muito fachendosos porque nos fala de uma relação com a morte absolutamente contemporânea. É a relação serena com a morte. A igreja católica pôs timidamente a Santo André como padroeiro da freguesia do Hío sem se atrever sequer a fazer uma interpretatio, não fosse ser que se perdesse o medo à morte. Os celtas não eram só guerreiros, nen eram só lavradores. Já César falava do elevado sentido religioso  dos druidas. 
Como podemos ter no abandono a uma lección fósil, a algo com que agora lutamos a base de meditação e de Zen?
Ilhas de Ons desde o Facho

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